“Percepção pode ser realidade na política monetária. O mercado não age somente no que vê, mas também no que espera do Fed e do governo.”
Amity Shlaes – autora e colunista [1]
Reflação é o tema central nas discussões de cenário econômico e no comportamento dos ativos financeiros desde o último trimestre de 2020. A divulgação dos resultados de efetividade de diversas vacinas produzidas em tempo recorde e a posterior distribuição e aplicação generalizada – quase 3,9 bilhões de doses aplicadas globalmente[2] –trouxeram o cenário de reabertura e recuperação econômica. Aliado a isso, a alteração de governo nos EUA trouxe um ambiente mais favorável ao comércio internacional e a economias emergentes.
Por outro lado, durante a pandemia, a necessidade de distanciamento social causou restrições e gargalos importantes na produção industrial e nas cadeias logísticas, seja pelo fechamento de plantas, subestimação da demanda ou restrições de transporte internacional. Agravando essa situação, os auxílios emergenciais e os novos hábitos impostos pela pandemia reforçaram a demanda por bens industriais, levando a um importante ciclo de elevações de preços. Num segundo momento, a reabertura de grandes economias, com a volta das atividades de turismo e entretenimento, deslocou a demanda e as pressões de preços para setores ligados a essa retomada, tais como automóveis, passagens aéreas, refeição fora do domicílio, hotéis etc.
Do lado dos ativos financeiros, isso se traduziu em uma forte recuperação dos preços das commodities, elevação das inflações implícitas e das taxas de juros nominais em diversos países. Notoriamente, as taxas das treasuries de 10 anos vieram do patamar de apenas 0,5%a.a. em agosto/2020 para próximo de 1,75%a.a. ao fim do primeiro trimestre de 2021.
Essa elevação de 125 bps[3] foi comparável em magnitude ao “taper tantrum” – o “chilique” do mercado quando Ben Bernanke anunciou que iria reduzir as compras de ativos em 2014 (aprox. 140 bps), e foi muito maior que as elevações ocorridas na eleição de Donald Trump (+80 bps), no pacote fiscal de 2017 (+90 bps) e quando o Fed indicou que elevaria de forma relevante a taxa dos Fed Funds em final de 2018 (+50 bps).
Sem dúvida, a elevação da inflação foi mais intensa e mais prolongada do que se imaginava. Mais do que isso, os inéditos estímulos fiscais e monetários de 2020 justificavam a narrativa de que estávamos entrando num processo inflacionário prolongado, e não apenas vivendo um repique temporário como defende o Fed – e com o que concordamos. Essa combinação levou o mercado a duvidar da disposição e capacidade do Banco Central americano em controlar a elevação de inflação, reforçando a alta da inflação implícita e das taxas de juros nominais mostrada no gráfico anterior.
Uma rápida reversão de expectativas
Como é comum em dinâmicas de mercado, em um curto espaço de tempo a combinação de alguns fatores reverteu fortemente essas tendências. Em primeiro lugar, na reunião do Fed de junho, os participantes do FOMC passaram a antever uma elevação da taxa de juros básica em 2023. Além disso, Jerome Powell indicou que o Fed reconhece que há progresso na direção dos objetivos do Fed, embora também tenha enfatizado que a redução do afrouxamento quantitativo ainda requer mais recuperação do mercado de trabalho. No entanto, do lado da inflação, Powell destacou que:
O Fed vê a elevação atual como transitória
A autoridade monetária dispõe de ferramentas muito eficazes para combater a alta da inflação e
O Fed não pretende tolerar taxas de inflação muito mais elevadas que o objetivo de 2% por muito tempo.
Este é um ótimo exemplo do poder de sinalização do Fed: apenas com palavras, sinalizando que atuará para conter eventuais elevações de inflação, o Banco Central foi capaz de reverter a percepção de que estava atrás da curva.
Somaram-se à mudança de postura do Fed as preocupações com a disseminação da variante delta do coronavírus, que vem causando aumento do número de casos em diversos países e um adiamento da reabertura econômica completa. A consequência foi uma decepção com o crescimento econômico em 2021, que colidiu com uma posição técnica excessivamente tomada no mercado de treasuries.
Nesse novo cenário, o patamar e a dinâmica das oscilações das taxas de juros americanas se alteraram. O gráfico a seguir mostra o comportamento da treasury de 10 anos enfatizando o período mais recente, quando não somente a taxa recuou mais de 50 bps como também voltou a ter uma correlação negativa mais acentuada com o S&P 500, como se vê na região sombreada.
Acreditamos que essa alteração é uma volta à normalidade – um retorno da relação entre taxas de juros longas e ativos de risco que prevaleceu nas últimas décadas. Bastou o Fed indicar que não permitirá que as taxas de inflação saiam do controle de forma permanente (por exemplo ultrapassando 4% ou 5%) para que essa dinâmica se reestabelecesse. Mais do que isso, esse movimento ocorreu apesar das fortes surpresas inflacionárias nos EUA, com os núcleos do CPI[3] registrando +0,9%, +0,7% e +0,9% sucessivamente nos últimos três meses.
O que justificaria esse movimento tão contra intuitivo, com as taxas de juros e inflações implícitas desabando mesmo em um cenário de curto prazo altamente inflacionário? Em primeiro lugar, a natureza das elevações de preço que levaram a essas surpresas confirmam um caráter temporário. Por exemplo, a alta de automóveis usados – um forte contribuidor para os núcleos – não deve se sustentar à medida que a oferta de automóveis novos se normalize. Além disso, uma manifestação inflacionária mais intensa agora poderá representar uma desaceleração mais rápida e forte dos núcleos da inflação até o fim deste ano ou início do ano que vem. Em outras palavras, a abertura dos números de inflação, que na superfície parecem muito negativos, na verdade confirma o caráter temporário do repique, exatamente como enfatizado pelo Fed. Por fim, juntou-se a isso um posicionamento excessivo na ponta tomada das treasuries – que vinha funcionando muito bem como hedge até então.
Olhando para frente, à medida que fique mais e mais clara a natureza temporária desses choques, os fatores estruturais desinflacionários voltarão a prevalecer sobre as taxas de inflação. Como comentamos na carta de janeiro, esses fatores são:
o processo de abertura econômica e globalização desde o fim da década de 1970, com a modernização e integração da economia chinesa ao sistema global;
os avanços tecnológicos que reduziram a intensidade de mão de obra na produção de bens, mudaram os padrões de consumo em favor de produtos intensivos em tecnologia e aumentaram a eficiência do capital financeiro e humano;
o envelhecimento da população, que leva a um excesso de poupança na economia, reduzindo as taxas de retorno dos investimentos produtivos e reduzindo a demanda por bens em detrimento de serviços e
a “ressaca do endividamento” vivida pela economia global, que levará anos, se não décadas, para ser inteiramente superada.
No caso do item 2, os ganhos de produtividade ainda foram acelerados forçosamente durante a pandemia, que obrigou as pessoas, empresas e até governos a implementarem tecnologias já disponíveis para viabilizar o trabalho a distância. Nesse sentido, a produtividade do trabalho pode ter sido acelerada ao longo dos últimos trimestres, o que é evidenciado pelo fato de que diversos países já retomaram um nível de atividade próximo ao pré-pandemia, mas com um nível de emprego materialmente inferior.
Ou seja, passados os efeitos transitórios de fechamentos, reaberturas e estímulos governamentais, poderemos voltar a um cenário desinflacionário reforçado, como o mercado parece começar a precificar. Neste ambiente, as posições aplicadas em treasuries voltam a ser a proteção mais eficiente para uma carteira diversificada de ativos de risco.
Uma estratégia solitária
Nesse contexto, a atuação do Banco Central do Brasil na política monetária destoa de forma importante dos pares globais, tanto desenvolvidos como emergentes. Assim como o BCB, diversos bancos centrais passaram a reconhecer a alta da inflação e atuar verbalmente ou através de elevação de juros. No entanto, a autoridade monetária brasileira se destaca na velocidade da mudança de seu discurso e, principalmente, na intensidade do ajuste que tem implementado, como mostrado na tabela a seguir.
Como pode ser visto na tabela, o desvio da projeção da inflação de 2022 no Brasil é menor que a média (0,31% vs. 0,42%), mas a elevação da taxa básica não só é a maior do grupo (325 bps) como chegará em 600 bps pela projeção de mercado. Ao contrário do que parecem crer os analistas, essa postura “uber-hawk” da autoridade monetária não está se traduzindo em uma maior eficácia da política monetária. Como argumentamos há bastante tempo, o Banco Central é a entidade que lidera as discussões e expectativas do mercado, mas a sinalização do BCB tem atuado contra seus objetivos. Mesmo ao implementar a política monetária “mais hawk do mundo[5]”, iniciando o ciclo com três altas de 75 bps e acelerando o passo para 1 ponto percentual, a autoridade monetária, sem perceber, reforça a preocupação e a desancoragem do mercado ao afirmar em seu comunicado que:
“Apesar da melhora recente nos indicadores de sustentabilidade da dívida pública, o risco fiscal elevado segue criando uma assimetria altista no balanço de riscos, ou seja, com trajetórias para a inflação acima do projetado no horizonte relevante para a política monetária.” e
“a piora recente em componentes inerciais dos índices de preços, em meio à reabertura do setor de serviços, poderia provocar uma deterioração adicional das expectativas de inflação”.
Com sua própria sinalização, o Banco Central do Brasil joga fora o poder de ancoragem da alta de juros. O BCB parece não ter percebido que suas palavras têm tanto peso quanto sua atuação. Se ele mesmo se mostra assustado com a situação fiscal e a inércia inflacionária, não há alta de taxas de juros que funcione no curto prazo.
Essa atuação contrasta com a de diversas outras autoridades monetárias, que atuam como força estabilizadora e lideram o mercado. Recentemente, por exemplo, o South African Reserve Bank – Banco Central da África do Sul – manteve a taxa de juros inalterada por unanimidade, uma surpresa dovish para o mercado que reagiu com uma redução das taxas de juros ao longo da curva. De forma mais ampla, a maioria dos BCs de países emergentes tem destacado o caráter temporário da inflação e sua origem nas restrições de oferta – e com isso mantido as taxas básicas estáveis ou em leve elevação (em passos de 25 bps). O Banco Central do Brasil foi sozinho pelo caminho que era seguido no passado: um choque de quase 6 pontos percentuais na taxa de juros (conforme embutido nas taxas de mercado).
Subir os juros com essa intensidade, mais cedo ou mais tarde, trará a inflação para baixo da meta. Porém, o custo dessa política para um país que não cresce há uma década e convive com enorme desemprego parece incompatível com o benefício de se reduzir a projeção de inflação do Focus de 2022 em 0,31[6] ponto percentual para a meta. Assim como em um avião em turbulência, os passageiros olham para a tripulação em busca de conforto e normalidade. Se a tripulação entra em pânico, é de se esperar que os passageiros também se desesperem. A maioria dos BCs no mundo age como uma tripulação firme e resoluta, liderando o mercado e mantendo o controle sobre as expectativas de alta dos juros, o que tem se mostrado muito mais funcional e eficiente.
Apesar desse ciclo negativo na dinâmica dos juros no Brasil, acreditamos que haverá o momento de retornar a posições aplicadas mais relevantes. Isso porque o arcabouço de política monetária será efetivo na reversão da depreciação cambial e na desaceleração da atividade econômica. Ao nosso ver, isso levará novamente a surpresas para baixo tanto em termos de atividade econômica como de inflação. Em nossas projeções, a inflação de 2022 deverá ficar muito próxima da meta – como quer o Banco Central – porém a um elevado custo em termos de atividade econômica, que poderá ficar abaixo de 1% no ano que vem. Portanto, assim como no caso do mercado de taxas de juros americanas, haverá o momento em que o mercado se surpreenderá com a reversão da taxa de inflação no Brasil, o que mudará a tendência de altas de juros que vivenciamos ao longo dos primeiros sete meses deste ano. Acreditamos, no entanto, que o custo em atividade e empregos poderia ser significativamente menor com uma sinalização mais firme e efetiva do Banco Central, como está ocorrendo em todos os demais países.
Equipe Persevera.
[1] “Perception can be reality in monetary policy. The bond market doesn't act merely on what it sees. It acts on what it expects of the Fed or the government”, https://www.brainyquote.com/authors/amity-shlaes-quotes, acesso em 06/08/2021.
[2] https://ourworldindata.org/covid-vaccinations, acesso em 25/07/2021. [3] 1bp – 1 ponto base – corresponde a 0,01 ponto percentual. [4] Índice de preços ao consumidor [5] https://www.bloomberg.com/news/articles/2021-06-15/world-s-most-hawkish-central-banker-is-losing-inflation-war, acesso em 27/07/2021. [6] Focus de 30/07/2021: https://www.bcb.gov.br/content/focus/focus/R20210730.pdf, acesso em 02/08/2021.
(11) 4780-3794
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